Em recente entrevista (5/12/2023), concedida à Rede Catarinense de Notícias, o presidente da distribuidora de gás natural em Santa Catarina, o ex-industrial Otmar Müller, afirmou que seu novo principal desafio seria fomentar a implantação do mercado livre de gás. Quando assumiu a concessionária, no final de maio de 2023, vindo do outro lado da mesa como disse, o engenheiro afirmou que as indústrias eram a base do crescimento da infraestrutura de redes e que seu principal desafio seria retomar, de forma urgente, a competitividade do gás natural no estado.
Ainda praticando a tarifa de gás mais onerosa do país, herança do período 2019-2022 quando foram renovados os contratos de suprimento para as novas bases, Müller parece redirecionar seu discurso ao transferir para o Governo Federal, mais especificamente à Agência Nacional do Petróelo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), a responsabilidade pela queda futura dos custos de aquisição do insumo.
Explicamos, com "alguns porques", as principais razões de que a afirmação do dirigente não se sustentará nos próximos passos do já antigo Novo Mercado de Gás, hoje denominado Gás para Empregar:
(1) Independente da abertura ou não do mercado de gás o setor já tem em operação novos ofertantes, o que ajuda a explicar o fato da Bahia praticar a tarifa mais competitiva do país. Nesse caso além de comprar melhor (no caso de Santa Catarina os contratos de curto prazo se mostraram ineficientes para ofertar competitividade), deve-se investir de forma equilibrada e mais eficiente na nova infraestrutura evitando onerar setores produtivos estratégicos. Nesse ponto é essencial definir se o segmento residencial deverá ser mesmo a prioridade da concessão até 2044, quando finda o contrato, já que possui alto impacto na margem de distribuição que compõem as tarifas praticadas ao mercado.
(2) O setor de gás natural na sua exploração e produção tem especificidades importantes que devem ser consideradas. O gás do Pré-sal, como exemplo, tem maiores custos e complexidades na exploração que o gás explorado em terra na Bolívia. Esses custos são necessariamente transferidos na composição do preço de venda. Nesse caso, o programa Gás para Empregar sinaliza uma solução interessante usando o setor consolidado do petróleo para suportar parte dos grandes investimentos necessários em escoamento e transporte, visando que o potencial de gás da costa brasileira chegue ao mercado.
(3) O setor do gás natural é oligopolizado, sofre influência do petróleo, das estratégias geoeconômicas e geopolíticas da Opep e de países produtores. Qualquer movimento mundial que afeta a oferta e a demanda reflete de forma direta em preços, como viu-se no conflito Rússia-Ucrânia e agora entre Israel-Palestina. Em Santa Catarina ainda temos o fator câmbio, já que o insumo é importado e atrelado ao dólar. A Alemanha, como exemplo, parou de comprar da Rússia e ao fechar suas usinas nuclerares teve que despachar térmicas a carvão para ter energia disponível. O terminal de GNL implantado na Baía da Babitonga, entre os portos catarinenses de Itapoá e São Francisco do Sul, é um exemplo que até hoje não consegue ofertar nova molécula por causa dessas conjunturas.
(4) A base do setor de gás natural no país é térmica, logo submissa às sazonalidades dos despacho das hidrelétricas. O país sinaliza, com a retomada da economia, um importante aumento de consumo elétrico e os riscos de apagão ainda não foram todos afastados. O gás natural sempre será requisitado nos períodos de crise hídrica.
(5) O país possui importante gargalos de infraestrutura no setor, especialmente os gasodutos de transporte. O caso do Sul do Brasil é emblemático. Hoje o Gasbol só opera com folga porque o consumo de Santa Catarina caiu muito com o forte crescimento das tarifas de gás, cerca de -25% do volume na indústria e -50% no GNV. No passado recente, com tarifas competitivas, o problema era inverso com o gasoduto operando acima da sua capacidade.
(6) Excluir ou menosprezar o papel da Petrobras é uma lição ainda não aprendida. Deu errado no ciclo recente e pode cobrar caro novamente. A empresa é ainda a melhor opção de suprimento e deve se estabelecer estratégias negociais mais afinadas, resgatando uma história que deu certo especialmente considerando contratos de longa duração. Importante destacar que a estatal retoma seus investimentos e será responsável por quase 25% dos projetos previstos no novo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), ultrapasando 300 bi (R$) de aporte em quatro anos.
(7) Investimentos em grandes infraestruturas, como é o caso do gás natural, possuem longa maturação, assumem incertezas e exigem ativos específicos. Logo, depende do papel estatal seja na concessão ou no investimento direto (como foi no caso do Gasbol). Novos gasodutos de transporte realizados pela iniciativa privada exigiriam uma larga margem para gerar o excedente do custo de capital, afetando a competitividade. Essa é uma das razões que no Brasil ativos rentáveis dos elos transporte e distirbuição saíram do Estado e dos estados subnacionais para a mão privada. Por que não apareceram investidores privados interessados em investir no Gasoduto Chimarrão ao invés de assumirem setores em operação, consolidados e com garantias de lucratividade?
(8) Logo, a saída do Brasil para os grandes setores de infraestrutura está no que Keynes chamava de socialização do investimento que exiga a destacada e necessária presença do Estado. Ignacio Rangel, também economista, nos lembra que nossos gargalos de infraestrutura são as principais razões da crise que se alonga desde o final da década de 1970 e que a saída está na relação dual entre Estado e mercado, para que por meio do capital nacional se enfrente a desindustrialização. Santa Catarina teve essa chance com o gasoduto Lages-Chapecó que seria realizado com investimento estatal de cerca de 1 bi (R$), mas não houve interesse da parte de quem lucra com os novos gosodutos implantados. O execedente de capital do estado iria permitir que os 25 anos iniciais da concessão que levaram aos 1,5 mil km de rede implatanda, realizasse mais de 60% desse total em apenas um ou dois anos.
A dúvida que fica seriam quais ações estariam em desenvolvimento para retomar uma receita que deu certo em Santa Catarina, quando no período de 2011 a 2018 o estado ofertava ao mercado um dos insumos mais competitivos do país e nossa indústria competia melhor. É importante destacar, por fim, que das 355 indústrias atendidas com gás natural em Santa Catarina, responsáveis por cerca de 50% do PIB desse setor, 40% exportam.
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