O gás natural tem significativa presença no espaço urbano-industrial brasileiro. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, atende mais de 3,2 milhões de lares, considerando o mercado residencial total dos dois estados, com prevalência de concentração nas capitais – em dezembro de 2020 representavam 86% de todo mercado de gás natural que abastecia unidades residenciais no país. Em Santa Catarina, no mesmo mês, com aplicações nas cidades de Criciúma, Tubarão, Balneário Camboriú, Florianópolis, São José, Itajaí e Joinville, 15.615 residências eram abastecidas com gás natural, o que representava apenas 0,41% do total de residências atendidas no país.
Estes dados são importantes porque estudos apontam que o deslocamento de energias mais poluentes e transportadas por caminhões para o uso de opções mais sustentáveis como o gás natural canalizado tem um impacto importante na redução de veículos transitando nas rodovias e cidades do estado catarinense, assim como impactam na qualidade do ar e sonora dos municípios. Em Santa Catarina, 67 cidades e mais de 8% das indústrias eram abastecidas com gás natural, representando por volta de 50% do PIB desse setor produtivo, segundo dados da FIESC. São mais de 1.300 km de rede implantada, mais de 17 mil clientes diretos da distribuidora estadual e quase 130 mil consumidores finais, considerando também veículos com GNV (Gás Natural Veicular). A maior parcela destes consumidores são os usuários de automóveis de pequeno porte – taxistas, motoristas de aplicativos e representantes comerciais – carros movidos a gás que usam a energia como ferramenta importante na redução de custos para os seus negócios, na maioria empregos informais associados ao fenômeno da “uberização”.
Conforme o filósofo Henri Lefebvre, em O Direito à Cidade de 2001, a industrialização e a urbanização são as principais características da sociedade moderna e devem ser o ponto de partida na análise das cidades. Neste contexto, a exemplo de outras infraestruturas instaladas no território catarinense, o gás natural também seguiu a tendência de concentração urbana-industrial na vertente atlântica do território. Historicamente, o desenvolvimento das concessões públicas desse setor de infraestrutura acompanhou o viés mercadológico, priorizando os mercados com maior potencial de consumo. As regiões privilegiadas pelo acesso às principais rodovias e aos portos, pelo maior desenvolvimento do turismo e dos serviços, também foram atendidas de forma prioritária com a oferta do gás natural.
Para o economista Ignacio Rangel, essa concentração é histórica no país. Sua premissa considera que, desde a Independência do Brasil, o poder do Estado brasileiro é exercido sob a influência de forças produtivas. O mesmo se constata em Santa Catarina, ao tempo que foi o setor industrial, concentrado com empreendimentos em municípios da vertente litorânea catarinense, que articulou a construção do gasoduto de transporte para atender à Região Sul do país.
Há mais de 20 anos, a oferta de gás natural às indústrias catarinenses representou um avanço em energia e tecnologias para o setor. A renovação tecnológica-econômica brasileira, ainda segundo Rangel, segue a lógica diversa nos ciclos econômicos no período pré-industrial, o que se consolida no período da industrialização que busca equilibrar a exportação com a importação dos bens de consumo, fundamento até hoje adotado nos planos econômicos nacionais da era democrática.
O gás natural adere a esse movimento ao ofertar competitividade e eficiência produtiva para as indústrias, o que ajuda a sustentar o objetivo do capitalismo industrial, que mesmo com destacado processo de desindustrialização desde 1980 reconhece o setor como agente protagonista de políticas econômicas e fontes de orientação na priorização e alocação dos principais investimentos em infraestruturas – Rangel cita que o mercado e o Estado são faces da mesma moeda.
Igualmente, o economista assume uma perspectiva de que o esforço baseado na produção de bens de consumo, embora tenha recebido suporte do Estado, poderia acontecer sem a sua interferência – a economia brasileira, mesmo com seu ciclo econômico interno, cresce quando o mundo avança e vivencia estagnação quando o mundo não se desenvolve –, desdobrando-se espontaneamente à lógica de mercado dentro dos ciclos do capitalismo.
O terceiro ciclo do urbanismo, associado à industrialização, como já pontuado, e classificado pelo francês François Ascher como neourbanismo, tem como princípio a existência de movimento que emancipa os limites espaciais e territoriais. A proximidade e a presença física passaram a ser desnecessárias para algumas trocas e práticas sociais, em especial na comunicação e relações de consumo. Com o individualismo contribuindo com a imobilidade, a circulação é estratégia para o desenvolvimento econômico das cidades. As metrópoles passam a ser adaptadas aos novos modelos de produção por meio de grandes vias e redes de infraestrutura, que incluem o gás natural.
O desenvolvimento econômico está cada vez mais associado à acessibilidade, conexão com as grandes redes de transportes e com mão de obra qualificada. Há, neste ciclo, a aceleração no desenvolvimento dos meios de transportes que modificam também o potencial qualitativo dos territórios e pressionam as antigas especializações industriais locais. Essa generalização da mobilidade torna obsoletas as estruturas limitadas espacialmente em áreas de mobilidade restrita, pressionando ainda mais as áreas à margem das metrópoles.
Nesse ínterim, a operação do gás natural em Santa Catarina, como no restante do país, segue a lógica comercial e mercadológica, cuja ferramenta de distribuição de energia concentrou sua atuação nos núcleos metropolitanos, aderindo assim aos pressupostos enunciados do neourbanismo de Ascher. Durante pouco mais de duas décadas de operação no estado, a rede de gás natural tem atendido esses principais núcleos, espaços concentrados e favorecidos pelo acesso às mais diversas redes de infraestruturas como portos, ferrovias e rodovias, além da garantia de acesso às outras diversas formas de energia.
Pode-se evidenciar que o gás natural assume um papel de promotor da desigualdade ou de enfrentamento dela. Embora não se pretenda potencializar o fator de influência de forma isolada desse modelo de infraestrutura, tampouco colar nele um papel protagonista para a conversão das premissas de desigualdade atreladas ao urbanismo contemporâneo, mas sim desatar os papéis que o insumo pode ajudar a exercer na sociedade como efetivo promotor de desenvolvimento.
A ampliação ou não da sua aplicação, como assinalado, impacta de forma bastante significativa nos índices de mobilidade urbana e de qualidade do ar e sonora das cidades brasileiras. Parece utópico, assim como na ótica do desenvolvimento de outras redes de infraestruturas, e talvez assim seja conveniente parecer na lógica do mercado, mas como premissa a universalização do acesso à oferta do gás natural seria uma atitude socialmente mais justa que a concentração e limitação da sua oferta em determinados espaços.
Além disso, o gás natural contribui para a melhoria da qualidade de vida das cidades e seu desenvolvimento socioeconômico. Trata-se de um elemento que dialoga com o neourbanismo naquilo que ele tem de positivo e negativo, como grifado, numa era das atividades econômicas cognitivas e quando os limites e as diferenças físicas e sociais entre a cidade e o campo tornam-se cada vez mais tênues. Não seria necessariamente o desaparecimento da indústria como vemos desde a terceira revolução, mas a premissa de que esse setor passa a depender cada vez mais das lógicas e poderes da economia cognitiva que, associadas à globalização, conforme o saudoso geógrafo Milton Santos, contribuem para o crescimento da acumulação e concentração de capital. Uma lógica que, em certo ponto se aproxima de parte do pensamento de Rangel, no momento que os reflexos da economia atingem o setor industrial e não o contrário, mesmo que esse setor exerça forte influência junto ao papel do Estado.
No período em que comemora-se o Dia Mundial do Direito à Cidade (31/10), atitudes mais reflexivas são necessárias para uma sociedade mais complexa e de futuro incerto como a atual. O gás natural deve ser pensado como parte integrante do terceiro ciclo urbano, com um olhar crítico para a lógica do retorno dos investimentos por meio do exercício de sua atividade comercial que aparentemente tem sido adotada até o momento. Da mesma forma, esse setor de infraestrutura deve assumir, de forma responsável, o fato de ser uma fonte de poder que controla recursos e, consequentemente, faz uso da sua organização e direitos e interfere nos movimentos.
Voltando à Lefebvre, pontua-se que o direito à cidade é o acesso e integração à vida urbana e a tudo que ela pode representar enquanto local de encontros e de trocas, ao passo que a vida e os empregos permitem o uso pleno e completo desses momentos e locais. Sustentando no pensamento marxista que se associada às perspectivas revolucionárias, o autor condiciona que o direito à cidade se daria pela proclamação e pela realização da vida urbana como reino do uso, da troca e do encontro separados da esfera do mercado, exigindo para sua concretização o domínio do econômico, que se materializa no valor de troca, no mercado e na mercadoria.
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