top of page

Estatismo ou privatismo no gás natural: a teoria rangeliana da dualidade e os ciclos econômicos

Atualizado: 7 de jan.

O aspecto verticalizado do setor energético brasileiro, uma característica dada por vias estatais conforme vemos nos modelos asiáticos, europeus e latino-americanos, foi colocado em cheque nos últimos anos (2019-2022), culminando com importantes desinvestimentos, como a venda da Eletrobrás e os diversos ativos rentáveis da Petrobras que contemplaram refinarias, gasodutos de transporte e a operação da distribuição de gás natural em mais de 20 estados.

Para debater este tema, tomamos princípio do saudoso economista Ignacio Rangel (1985) de que "seria descabido e sem propósito ser estatista ou privatista no abstrato". Noutros termos, os processos de privatização, estatização ou concessão pública devem ser analisados na realidade concreta e considerando os ciclos econômicos internos e externos e longos e médios.


Para Rangel (1956), o que deve ser discutido é o que e quando privatizar. Com isso, no caso do setor de distribuição de gás natural brasileiro, esta análise de pertinência deve ser considerada e colocada em debate, a fim de analisar o caminho tomado, levando em consideração também questões locais. A necessidade e o grau de intervenção do Estado variam com o tempo e conforme o setor ou o tipo de indústria, enquanto devem estar associados ao ciclo e à questão da capacidade ociosa e do pleno desenvolvimento de certas atividades como menciona o economista.


A afirmação de que o privado é mais eficaz que o Estado não cabe, ao tempo que a superação de períodos recessivos se dão por meio do investimento. A história conta que nas grandes depressões mundiais o setor privado das economias centrais não deram conta de responder às crises com novos projetos de infraestrutura (RANGEL, 1988), cabendo este papel ao setor público.


Um exemplo dessa realidade está nas fases recessivas do primeiro ao terceiro ciclo de Nikolai Kondratiev (ciclos longos da econômica mundial e nacional), quando o Brasil soube enfrentar as crises internacionais com a substituição de importações, mesmo que de forma distinta, dentro da sua realidade de dualidade da época (RANGEL, 1983). Na fase recessiva do primeiro ciclo (1815-1847), com a diversificação interna das fazendas sob o comando dos senhores de escravos; na crise do segundo ciclo (1873-1896), com a diversificação da produção no quadro do mercado comandado pela burguesia comerciante; e no terceiro ciclo (1920-1948), após a diversificação da produção interna pela burguesia industrial que nascia, ainda que politicamente pilotada pelo latifúndio semifeudal, seu sócio maior desde a revolução de 1930 (RANGEL, 2012).


No caso do gás natural, assume-se que o papel regulatório no planejamento dos investimentos das empresas distribuidoras não resta verificado na agenda dos estados. São as próprias concessionárias que, de forma majoritária e segundo a lógica empresarial, desenvolvem o plano de investimentos e os segmentos de mercado e espaços que serão abastecidos, determinando os percursos que a nova infraestrutura irá percorrer. No entanto é este planejamento, mesmo que ressentido do papel norteador do Estado, que influencia a formação tarifária e sintoniza a velocidade do investimento, dando a base para o avanço na infraestrutura. Logo, a composição acionária das empresas ou o caráter privado e estatal das companhias pouco influenciariam, caso houvesse um firme processo de fiscalização pelo agente regulador e o comando do planejamento por vias estatais.


Considerando a prática, o que muda com a ausência do papel de Estado é que o processo de empresarização de um modelo concedido leva para a priorização dos resultados financeiros, colocando a questão da competitividade ao mercado e o atendimento de espaço deprimidos no segundo plano. É mais uma lógica que procura prevalecer também neste setor, associando e confundindo o conceito de rentismo com o de produtividade. No caso do gás natural, vemos essa realidade no elo da distribuição que é destacadamente rentável e se desenvolve, enquanto o de transporte, que carece de maior investimentos e uma visão de longo prazo para o retorno financeiro com riscos maiores não ganham a atenção do setor privado, carecendo do papel único do Estado para seu melhor desenvolvimento.


Ao longo dos ciclos econômicos, os setores público e privado vivem um movimento de constante complementaridade e, ao mesmo tempo, em conflito na mobilização e alocação de recursos (RANGEL, 1986); o que é assinalado por Rangel (1987) como aquilo que se assemelha a uma “dança” entre a privatização e a estatização, necessária para a superação das crises cíclicas. Este pensamento considera ainda que a privatização ou concessão de um setor é condicionante fundamental para que outra área seja estatizada, e assim o Estado dê conta de atender às necessidades sociais por meio da infraestrutura e dos serviços.


A “velha pendenga” entre estatismo e livre empresa, assim colocada por Rangel (1983), é comum nas crises, ao tempo em que o setor público (no caso do Brasil) tem dificuldade para cumprir a aplicação de programas de investimentos nos períodos recessivos e diante do endividamento do Estado. A concessão de serviços de utilidade pública era apontada no início da década de 1980 como uma oportunidade, se considerarmos que os projetos pelos quais o Estado brasileiro era responsável se materializariam desta forma, acompanhados e fiscalizados pelo poder concedente.


Neste “diálogo de extremos entre privatistas e estatistas”, Rangel (1983) esclarece que sempre haverá um setor privado e um setor público, tal como antes, embora sua estrutura possua dissonâncias no tempo. Nas fases recessivas, como vimos, países em desenvolvimento como o Brasil carecem de projetos ambiciosos de infraestrutura que ocorreriam a partir de mudanças institucionais para abarcar a tecnologia disponível dos países centrais. Esta condicionante é essencial antes mesmo do debate da distribuição dos papéis entre o setor público e privado, que para o primeiro tem como consequência a perda de parcela importante de ativos, enquanto o segundo abre mão de posições importantes no comércio exterior, face à reestruturação como serviço planificado de Estado (RANGEL, 1983). Se vê essa realidade se materializando atualmente no país com a entrada do modal GNL como opção para nova oferta do gás natural em espaços desabastecidos.


A antiga máxima apresentada como uma gangorra dentro da teoria dos ciclos econômicos é difícil de ser aplicada atualmente no setor do gás natural nacional. Separam-se três pontos para explicá-la: o serviço já foi concedido no território pelos Estados; sobre a lógica regulatória e de fiscalização o sistema é operado por meio de agências estaduais e suportado na realidade dos mercados locais dentro do prevalente caráter urbano-industrial dos espaços; e as empresas que exploram a concessão são privadas ou sociedades de economia mista com capital majoritariamente privado, todas rentáveis e lucrativas e com sócios presentes em diverso elos da cadeia desse mercado.


Outro ponto a ser considerado é que a comercialização do gás natural no país formou-se como um monopólio natural e por força do próprio mercado. Este modelo complexo evidencia um fato que parece ser ignorado ao tratar sobre a projeção futura do setor: o capital que o compõe já é majoritariamente privado e há pouco a ser disponibilizado aos potenciais investidores, o que não justifica uma eventual transferência de ativos e principalmente dos ganhos financeiros que são garantidos no atual modelo. Mesmo que sustentado na eventual justificativa de ampliação dos investimentos, esta premissa precisa ser melhor avaliada ao tempo que pressupõe tarifas mais elevadas, que afetam a competitividade do gás natural, e que novas áreas de exploração do serviço não estão sendo concedidas, em especial no setor de transporte.


Com isso, tem-se que o movimento federal se sustentou em alto grau de irracionalidade quando fomenta a privatização de um setor majoritariamente de capital privado, já concedido e que construiu um monopólio natural. Além disso, o enfraquecimento da Petrobras fragiliza por consequência o papel estatal e fortalece os interesses de oligopólios empresariais dos capitais que operam na cadeia produtiva do O&G. Ao mesmo tempo não garante preços mais competitivos aos usuários finais do produto e não altera a base nuclear do serviço, sua regulação e fiscalização, que deve estar associada às necessidades locais e regionais. Também ignora o movimento dos ciclos econômicos, externos ou internos, e por lógica se distancia da necessidade de resposta aos constantes períodos da gangorra do capitalismo, além de buscar acabar com o propósito original da maior empresa nacional que incluía (inclui) questões fundamentais da soberania nacional por meio da busca pela independência energética e pela retomada da industrialização.


Texto atualizado da dissertação de Leonardo Mosimann Estrella (ESTRELLA, 2022).

89 visualizações0 comentário
bottom of page