Em julho de 2016, por meio de uma rede social, a geógrafa Maria Adélia Aparecida de Souza (1940) expôs sua reflexão crítica sobre uma entrevista de David Harvey (1935) à revista brasileira Caro Amigos. Geógrafo britânico e formado na Universidade de Cambridge, Harvey leciona na Universidade da Cidade de Nova Iorque e pesquisa questões ligadas à geografia urbana. Sua busca, para compreender a atual globalização neoliberal, estaria na construção de uma teoria de desenvolvimento geográfico desigual a partir, na visão dele, da categoria marxiana. Em 2007, Harvey foi classificado como o décimo oitavo teórico vivo mais citado no campo científico.
Harvey falou à Caro Amigos em no mínimo duas oportunidades. Em março de 2012, quando esteve no Brasil para lançar seu livro O enigma do capital e as crises do capitalismo em eventos realizados na PUC/SP e USP. Na oportunidade, concentrou seu diálogo na crise capitalista dada a partir de 2008 e na ausência de um caminho para sair dela, em especial pelo campo político.
O autor apontou como sintoma principal da crise estrutural o desdobramento de políticas de austeridade por governantes da América do Norte e Europa, sustentados na justificativa da dívida pública e do enfrentamento da inflação. Citando o caso da crise grega e a experiência na Argentina de 2002-2005, defendia como saída para a Grécia a moratória e expunha que a luta de classes impediria esse movimento, pois a burguesia grega possuía investimento financeiros fora do país.
Além disso, a partir da experiência chinesa — denominou de plano Keynesiano — e brasileira, aponta a política expansionista em infraestrutura como um modelo de desenvolvimento adequado frente à crise, com efeitos globalizantes como no aumento de demanda por matérias primas em países periféricos. Na China, apontava, o mercado interno significava 35% da economia do país, quando nos EUA era de 70%.
Citava também que a manutenção da crise estava associada às políticas monetárias adotadas pela União Europeia e, no caso dos EUA de subordinação à elite financeira, resultando no aumento da renda e da desigualdade. Resume como sendo um projeto político internacional das altas classes, apresentando como evidência de que as medidas de austeridade se opunham a maior taxação de impostos às classes ricas e na diminuição do orçamento bélico militar.
Já em julho de 2016, o debate de Harvey se dá sobre o crescimento do conservadorismo e a polarização política e social, entre forças desiguais, dados em nível global e sobre a crise da urbanização mundial como produto da sistemática e dinâmica busca capitalista pelo crescimento ao se limitar o desenvolvimento pela modo expansão global identificados nos séculos 19 e 20. Vou me ater ao segundo tema, até porque no primeiro suas projeções no campo político (a derrota de Trump na primeira eleição) e econômico (crise econômica na China pela bolha imobiliária) não se materializaram.
O geógrafo encara a urbanização não apenas como a construção da cidade, mas também como a implantação de uma rede de comunicação complexa que exige grande alocação de capital a longo prazo e com risco de não ser rentabilizado e, com isso, dada como subordinada ao excedente da acumulação de capital. Contudo, com um marca julgada bastante desigual no Ocidente: a subordinação do Estado ao capital, o que coloca a população em plano secundário.
Nessa realidade, enxerga a reprodução urbana como vinculada à indústria petrolífera, da construção (civil) e automobilística, cujo setores concentram a maior parte do capital mundial. Logo, dentro de um conceito de imobilidade, em especial em países onde a circulação rodoviária prevalece na logística produtiva. A partir dessa realidade, se posiciona de forma polêmica ao assumir que não se deve sempre culpar o imperialismo (sua fala desloca constantemente esse conceito avançado por Lênin em Marx), pois considera que a classe interna de capitalistas em países de desenvolvimento, denominada como não importada, seria a principal responsável pela desigualdade — cita como exemplo o setor imobiliário brasileiro, que, em hipótese, não estaria vinculado ao capital estrangeiro.
Quando da segunda entrevista de Harvey à Caros Amigos, a reação da professora Maria Adélia, talvez a principal adepta de Milton Santos, foi a seguinte: Cale-se! A enfática reação da geógrafa se dá ao acreditar na existência de destacado contradições ao colocar em paralelo os pensamentos de Santos e Harvey. Levanto esta questão também com base na exposição da própria Maria Adélia na aula inaugural (2/9/2022) do programa de Pós-Graduação em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental da Udesc, quando expos considerações sobre planejamento territorial em Florianópolis.
Seu argumento central é de que o território é produto de uso e de quem o usa, no qual os cidadãos devem ser o núcleo do processo de planejamento, em contraponto à prevalente dinâmica de planejamento público que considera a definição de planos a partir de temáticas setoriais. Cita que a política deve ser territorial com programas setoriais. Assume o território usado como uma categoria de análise social, na qual há como pressuposto disputas pelo seu uso, e o planejamento como um ato político imbuído de tecnicidade.
Maria Adélia, após ler entrevista do geógrafo britânico sobre nosso país sugere, na posição que assume como defensora da Geografia Nova de Milton Santos, que a interpretação do britânico sobre o Brasil deva ser suprimida. Sua forte posição se sustenta no direito nacional de uma produção teórica interna, a partir da sua realidade concreta em contraponto à uma cultura científica dependente. Além disso, critica o fato da geografia de Harvey não colocar o espaço como protagonista, ao demonstrar que autores do Norte desconhecem o campo de pesquisa dos autores do Sul.
A partir de Florestan Fernandes, mestre pela USP e perseguido pela Ditadura Militar, em seu prefácio de Leituras & Legados (2010, p. 14), defende a necessidade de descolonização intelectual, colocando o rigor do concreto também como justificativa para questionar olhares distantes da realidade nacional. Cita a relação do espaço como espaço/tempo de Milton Santos para divergir da segmentação feita entre espaço e tempo — rechaça essa separação por entender que, como instância, o espaço não é produzido por ser abstrato — por Harvey, além de criticar o que chama de afirmação confusa de Harvey quando expõe a citação do britânico de que as práticas e processos de produção material estão sempre em mudança. Ou seja, Harvey, na visão de Maria Adélia, embora marxiano assumido, flerta com o positivismo que estaria revelado como uma categoria de abstração que se ausenta da concretude que deveria formar o conhecimento.
Outra temática difundida distancia também as ideias de Maria Adélia das de Harvey: O direito à cidade. A trajetória intelectual política do britânico passa pela luta pelo direito à cidade, não apenas como o acesso aos serviços e equipamentos, mas também na construção e transformação do tecido urbano. Para Harvey, a questão central do direito à cidade está no confronto com a dinâmica da urbanização dada pela acumulação do capital como uma resposta à crise da vida cotidiana ao conceber uma vida urbana alternativa.
Em seu livro Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (2014), defende que a reorganização das cidades poderia ser foco de resistência anticapitalista. Em razão do que assume como destruição da cidade tradicional pelo desenvolvimento capitalista, prega a micro revolução urbana baseada em espaços sociais que formam sua localidades com hegemonia não subordinante à lógica do capital — define como sendo um movimento de resistência e confluência espontânea da prática urbana, como produto da ação coletiva.
Na crítica também ao Direito à cidade do sociólogo francês Henry Lefebvre (1901-1991), Maria Adélia assume que não existe direito à cidade, mas sim há o direito ao lugar. Seria este o direito à liberdade, ao considerar que o espaço não é produzido. Define cidade como materialidade produzida; o urbano como modo de vida criado a partir da cultura; o urbanismo como técnica de projetamento da cidade; o lugar como espaço do acontecer solidário que une pessoas — portadoras do novo (não da novidade) que transforma o antigo, trazido por uma totalização como flecha do tempo carregada de descobertas — para um propósito que forma eventos em movimentos que avançam ou sofrem resistências políticas; e a localidade como uma determinação de números.
Em 2023, Harvey volta a conversar com outro importante periódico da esquerda brasileira. Na Jacobin (25/02/2023), se volta à temática geopolítica que parecia ter minimizado ao colocar o imperialismo em segundo plano sete anos antes, quando agora assume que há uma reconfiguração da ordem mundial.
Na conversa, coloca o crescimento do PIB (massa de lucro crescente) como o núcleo do problema social da atualidade, pois o aumento da dívida coloca como credores as oligarquias. Cita ainda como reflexo da pandemia uma retomada neoliberal como restauração do poder de classe que fortaleceu a economia informal, destacadamente evidenciada na formação de mais desigualdade.
Ao citar a massa crescente que se forma a partir da exploração do trabalho, o geógrafo britânico coloca que a polarização econômica entre a China e os EUA teria foco no domínio da maior parte da massa crescente pelo seu caráter reprodutor de mais massa crescente. Coloca a inflação como um remédio para ampliar a arrecadação e capacitar o pagamento da dívida.
Para Maria Adélia, o que aproxima Milton Santos de David Harvey tende a ser apenas o prêmio Vautrin Lud, uma espécie de Nobel da Geografia, recebido pelo brasileiro em 1994 e pelo britânico, um ano depois.
Nos cabe lembrar que a estrutura da geopolítica, a partir de Marx (Capital I, 2017), assume o capitalismo global como conjunto de relações e práticas de certa forma distantes da territorialidade, em perspectiva com o papel de Estado onde a política se impõe em caráter de soberania. Ou seja, as relações e práticas globais estão associadas ao capitalismo global e à inerente premissa de conflitos de classes e de extração de mais-valia, componentes estabelecidos pelas relações sociais de produção e dominação.
Negar ou deslocar o imperialismo para a margem da sua análise sobre o Brasil é um belo escorregão de Harvey, até de certa forma contraditório, quando o britânico coloca as três grandes indústrias mundiais (energia, construção e automobilística) como a equação de formação do urbano.
Além da destacada acumulação desses setores apontada pelo autor, são elas as grandes redes de edificação do capitalismo oligopolista que é a fase superior do modo de produção vigente, conforme Lênin. Em especial quando resolvermos olhar para a realidade do campo latino-americano.
Casos recentes fortalecem essa perspectiva material, a controversa exploração do shale gas estadunidense derruba a produção de gás natural no México quando há aumento da demanda interna; provoca a Argentina a reagir com sua produção interna do insumo levando a possibilidade de inverter o fluxo de importação da molécula com a Bolívia; o Brasil passa a pensar em escoar o seu potencial do Pré-sal e rejeitar a paridade internacional de preço da commodity; e há bloqueio no abastecimento da Europa que se dava pela infraestrutura russa como importante elemento do conflito na Ucrânia enquanto a Venezuela vê historicamente seu grande potencial de exploração e produção nunca avançar.
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